Depois de ler tantos livros traduzidos foi um frescor mergulhar em uma obra nacional e ser capaz de identificar tanta coisa do nosso dia-a-dia. Este livro bateu tão forte que não larguei até terminar a leitura.
Porém Bruxa, de Carol Chiovatto, está disponível no Kindle Unlimited da Amazon, praticamente a Netflix dos livros, como chamam. E uma das vantagens de ter a assinatura é a oportunidade de encontrar tantas obras de autores do nosso Brasil. E posso afirmar, Porém Bruxa passou longe de ser uma decepção.
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Resumo geral: leiam e protejam nossos livros nacionais!!
"Somos as filhas de todas as bruxas que vocês não conseguiram queimar. Bem poderia ser verdade: a Inquisição nunca conseguiu queimar uma bruxa sequer, então a descendência das legítimas é extensa. Sei disso de fonte segura: sou uma delas, afinal."
O prólogo de Porém Bruxa já começa com Ísis em uma das suas funções. Ela é uma bruxa monitora e deve deixar sua área, São Paulo, a salvo de perigos mágicos, protegendo os comuns do que eles não podem se defender. E logo no capítulo seguinte a vemos saindo em um encontro como qualquer mulher adulta dona da própria vida. Eu não sei o que mais gostei nesse livro, a construção dos personagens, as bruxarias ou a investigação, há muitas coisas legais acontecendo aqui.
Ísis é uma protagonista de personalidade forte, não leva desaforo de graça e se impõe quando necessário. Ela defende seus ideais e as pessoas que são importantes para ela além de está sempre disposta a enfrentar as consequências de suas escorregadas, pois, mesmo sendo contra as regras interferir com encantamentos, ela ainda usa ocasionalmente para ajudar, principalmente quando são seus amigos precisando. Não há Corregedor que a impeça.
Sendo assim, a mitologia da história não é complexa e difícil de entender. Como filhos da terra, os bruxos estão ali para protegerem e equilibrar. As hierarquias do seu sistema funciona para evitar desvios de condutas e assim todos se mantêm na linha. Como monitora, Ísis é fiscalizada por um Corregedor correspondente, até chegar no Conselho que preserva a ordem.
Fonte: Tumblr - Reprodução |
A escrita da Carol é basicamente um espelho da protagonista, pois possui uma narrativa limpa, sem enrolação e que vai direto ao ponto, refletindo o próprio pragmatismo de Ísis. O ritmo do texto é constante e rápido o que torna quase impossível parar de ler (foi realmente uma luta fazer uma pausa).
Eu me encantei muito com esse livro. É impossível não pensar em como tudo foi tão bem conduzido e planejado. Um dos elementos de que mais gostei foi a construção da magia, não espere uma história com um sistema mágico semelhante ao dos livros anglófonos. Aqui, as raízes nacionais estão preservadas, temos matrizes africanas que fazem presença e que são importantes na condução da história. E mais, os feitiços são executados em Atiaia, do tupi. A ancestralidade não é negada entre estas páginas.
"Toquei a maçaneta e murmurei o feitiço para destrancá-la. Não, não é Alohomora. Bruxas não usam arremedo de latim nos seus encantos"
O enredo do livro gira em torno de investigações policiais e tem início, primeiramente, com a intuição de Ísis lhe apontando para verificar uma notícia de desaparecimento, caso que logo se cruza com outro investigado por Helena, sua amiga e delegada da polícia. O mundo das duas se misturam quando percebem que o caso está interligado a forças sobrenaturais. A partir daqui, tudo corre sem grandes pausas para investigar as suspeitas, as pistas são postas de maneira clara e acompanhamos tudo sem muito problema. Com pontos tão interligados e amarrados, não é difícil descobrir quem está por trás de tudo e seus planos.
Por outro lado, é do capítulo 8 que a história vai tomando o seu rumo. Como a narrativa do livro é sempre direta, aqui nos surpreendemos com um vislumbre do lado mais emocional de Ísis. Quando Victor, o corregedor, lhe faz uma visita, ela acaba evocando memórias antigas de um trauma que sofreu. Mas Ísis tem a sorte de ter pessoas especiais ao encalço. O que seria dos seres humanos sem as amizades, não é mesmo? Ísis possui amigos que ao menor sinal de algo incomum já estão prontos para oferecer seus cuidados. Essa rede criada por eles forma uma base incontestável de apoio.
A composição dos personagens é muito real, são pessoas comuns em seus defeitos e qualidades, mas além disso são também representações e inspirações de ideais. Carol proporcionou visibilidade para personagens que temos menos contato, como Dulce Vitória, mulher trans, que mostra sua luta diária ao mesmo tempo que ajuda a protagonista de maneira que nenhum outro personagem poderia.
“一 Eu sabia que você vinha 一 disse ela simplesmente.
Aquela frase era nossa declaração de amor uma para a outra: eu sabia que você vinha. Já havíamos passado por maus bocados, cada uma 一 ela, piores do que eu 一, mas essa verdade incontestável só se tornou mais sólida. Eu sabia que você vinha, porque você sempre veio. Toda santa vez. Nos problemas mais banais e naqueles que pareciam preceder o vale das sombras da morte.”
Outra relação que eu gostei foi de Victor e Ísis, mesmo trabalhando juntos por anos eles sempre mantiveram um certo distanciamento por causa de primeiras impressões equivocadas. Mas há uma tensão entre eles, até uma certa facilidade de compreensão quando ambos baixam a guarda, e deixo logo aqui o quanto eu torço por esse possível casal. A confiança que eles vão desenvolvendo a cada capítulo é muito legal, adoro o fato de não haver pressa na construção do vínculo entre eles.
Fonte: Fanpop - Reprodução |
Algo que definitivamente não passa batido no livro é como a autora exibe o cotidiano de uma mulher indo e vindo normalmente em qualquer lugar. O livro está recheado de críticas sociais sem ser enfadonho, sem se prender em explicações e sem obrigação de ser didático, os temas apresentados dão ótimas discussões.
Por fim, recomendo demais a leitura de Porém Bruxa. Não vejo a hora de poder ler a continuação. Acho que a única coisa que não me agradou tanto no livro foi que o ritmo rápido prevaleceu até nas cenas mais emocionais, eu teria aproveitado melhor se o ritmo diminuísse um pouco em algumas partes. Senti que não me conectei tanto com a história e com os personagens quanto poderia. Fora isso, não há o que reclamar, a leitura vale muito a pena. Nada se compara a ler um livro nacional e simplesmente compreender os detalhes sutis da nossa construção social ali, coisa que não sentimos ao ler uma obra traduzida. Porém Bruxa é uma boa pedida para quem está disposto a começar a ler livros nacionais.
Ficha técnica:
Autora: Carol Chiovatto
Editor: Artur Vecchi
Revisão: Gabriela Coiradas